Universalismo versus Relativismo

Nas sociedades multiculturais contemporâneas, a relação entre crime e cultura assume contornos mais complexos e não necessariamente da mesma natureza daqueles que caracterizavam as discussões clássicas em torno das chamadas "sub-culturas desviantes". Essa relação pode agora envolver debates mais amplos tais como "direitos versus cultura" ou "universalismo versus relativismo". Contudo estas dicotomias nem sempre são o prisma mais adequado para situar a tensão que pode existir entre a indivisibilidade jurídica do Estado e a (alguma) diferença cultural.

O exemplo da criminalização de práticas como a mutilação genital feminina:

Durante muitos anos se encarou as diferentes culturas como sendo bem definidas e distintas, assim como homogéneas e estáveis. No entanto esta perspectiva sobre as culturas tem sido posta em causa, principalmente desde a Segunda Guerra Mundial e com a intensificação da globalização das culturas acompanhada da imigração económica e de refugiados que ajudaram a tornar as sociedades multiculturais. Desde aí percebeu-se que as diferentes culturas não são estanques nem estão bem definidas muito menos integradas.

Esta pluralidade étnica facilmente provoca conflitos com os valores vistos como universais nos estados modernos liberais, como por exemplo a França. A sociedade francesa, defende o universalismo e a assimilação. Esta posição é entendida como um imperialismo cultural que dá ênfase à uniformidade cultural, defendendo que os imigrantes devem ser culturalmente assimilados pois, segundo esta perspectiva, é a única forma de obter uma sociedade homogénea e livre de conflitos (o que não acontece), para isso o imigrante terá de abandonar todas as suas especificidades culturais e adoptar a cultura dominante do país que o recebeu.

Temos assistido a tomadas de posição extremadas entre o relativismo e o universalismo cultural em relação aos direitos humanos. A posição relativista nega a possibilidade de qualquer tipo de formulações universais em relação aos direitos humanos, afirma que a posição universalista põe em causa o direito à diferença cultural ao impor determinados direitos ocidentalizados como universais. Fundamentam a sua perspectiva na crença de que as culturas são fechadas à mudança e demarcadas uma das outras. Como já foi referido, este pressuposto foi posto em causa a quando da verificação da abertura cultural a adaptações.

O universalismo, por sua vez, pretende impor uma concepção de direitos a nível universal, ou seja, os direitos humanos desenvolvidos num contexto ocidental devem, segundo esta óptica, ser aplicados a todos os indivíduos independentemente da sua cultura. Ignorando singularidades culturais e localismos específicos que poderão entrar em conflito com esta posição.

Universalismo e relativismo cultural são frequentemente apresentados como duas morais opostas e irreconciliáveis em relação aos direitos humanos. No entanto têm surgido posições intermédias, que pretendem mostrar que é possível não polarizar as decisões num único sentido.

Marie-Bénéticte Dembour argumenta que estas duas posições, relativistas e universalistas, não podem ser consideradas independentemente uma da outra. Assim ela defende que há momentos em que se deve optar pelo relativismo e outros em que se deve tomar a decisão universalista, ela usa o exemplo do pêndulo para figurar a sua posição. Desta forma ela não pretende alcançar um entendimento entre as duas perspectivas mas sim minorar as limitações e insuficiências de ambas não tomando uma posição única.

A autora pretende mostrar como a mutilação genital feminina não é uma situação claramente definida para que possa sobre ela impor-se o universalismo como defende Hatch, para ele neste caso não deve entrar o relativismo. Dembour contraria este argumento dizendo que é possível num caso de mutilação genital feminina errar entre o relativismo e o universalismo.

No mundo ocidental a “circuncisão” feminina é tida, pela sociedade geral, como intolerável e cruel. E de facto o é, no entanto a questão tem um nível que complexidade demasiado alto para permitir simplesmente tomar uma posição de condenação.

Analisemos os motivos apresentados por quem tem esta prática, geralmente evocam a tradição, a religião, a saúde e razões sexuais. Outros acreditam que torna a mulher limpa, que aumenta a fertilidade da mulher e ainda que protege o bebé do “perigo” do contacto com os órgãos genitais da mulher durante o parto. Sabemos, antes de mais, que a cultura não é estanque ou seja é possível trabalhar no sentido de inverter o que dizem ser tradição, é obviamente um trabalho moroso e complicado, mas é algo que tem de ser feito a longo prazo. Recordo-me de uma tribo que impunha culturalmente à mulher o uso de uma espécie de prato no lábio inferior, abria-se o lábio e ia-se inserindo um prato que alargava o lábio. Se a mulher tomasse uma posição de recusa desta prática não iria ter um marido e sofreria da rejeição social. No entanto tomou-se conhecimento de uma mulher da tribo que se recusou a usar o prato mesmo consciente das consequências que disso iria advir.

Algumas das justificações utilizadas, leva-nos a argumentar segundo uma posição feminista, é claramente uma prática de submissão da mulher, principalmente quando esta prática é levada a cabo para permitir um maior prazer sexual no homem. Ou simplesmente quando afirmam que uma mulher só se torna mulher quando é levada a cabo a sua “circuncisão” genital.

Deste modo, todos os motivos apresentados na defesa da prática em questão podem ser refutados pelo ocidente. No entanto é necessário aprofundar a questão, e caminhar entre o relativismo e o universalismo cultural.

Em França, muitos foram os julgamentos deste tipo de práticas levadas a cabo por imigrantes em território francês. Inicialmente o pai e/ou, com mais frequência a mãe, eram condenados a uma pena de prisão, no entanto as decisões começaram a sofrer um revés, assim, a maioria dos julgamentos terminavam com pena suspensa, noutros casos absolviam os arguidos, para noutro voltarem aplicar penas de prisão.

Esta alteração na execução da lei vai no sentido do defendido por Dembour. Ela explica que as penas suspensas podem ser entendidas como reflectindo a posição intermédia entre o relativismo e o universalismo, respectivamente entre a absolvição e condenação. No entanto a adopção da posição universalista não tem necessariamente de levar à condenação e a tomada de posição pelo relativismo cultural não implica absolver os acusados. Assim é possível estar contra a excisão e identificá-la como uma violação dos direitos humanos sem apelar à sua criminalização. Mas é preciso ter em conta que a decisão de absolvição pode passar uma mensagem errada para a população imigrante africana fazendo com que eles julguem que deixou de ser ilegal “circuncisar” as filhas.

Estas novas posições decisórias dos tribunais mostram-nos, um progressivo afastamento da posição única do universalismo e o reconhecimento de que princípios generalizados não fazem justiça à realidade, no entanto também não se verifica um triunfo do relativismo. Começou-se a ter uma preocupação de entendimento da outra parte, percebeu-se que há nesta prática uma forte pressão social sobre a mulher que de facto a obriga a esta prática e que não é por crueldade que os pais infligem este sofrimento à criança, eles têm simplesmente uma preocupação em relação ao futuro da sua filha.

A posição de Dembour seria errar incomodamente entre as duas posições – condenação, absolvição – pois nem uma nem outra são absolutamente correctas. No entanto, Dembour, apesar de não ter uma consideração errada sobre o tema, não parece apresentar nenhuma solução prática para este problema, obviamente que não é fácil, mas esta posição do “pêndulo” é a meu ver uma solução de curto prazo, será necessário apresentar medidas de acção. Desta forma, sabendo que a cultura pode ser alterada, e não querendo ser universalista, julgo que poderia haver possibilidades de se conseguir alterar esta prática, pelo menos em relação aos imigrantes.

Desta forma impõe-se a questão se devem ou não criminalizar e condenar legalmente esta prática. Poderá ser a cultura uma desculpa para se desrespeitar os direitos humanos? Não. No entanto, a questão não é assim tão linear, é preciso ter em conta a tendência do universalismo cultural dos direitos humanos e introduzir alguma relatividade na resposta, isso permite-nos olhar por outra janela, ou seja termos em conta as diferenças e as peculiaridades de cada cultura. Isto não significa necessariamente que aceitaremos, neste caso, a mutilação genital feminina, apenas iremos abordar a questão de uma forma mais profunda. Assim sendo, defender-se-á a alteração e abolição desta prática, não pela imposição legal mas sim seguindo a ideia de que uma das características da cultura é a sua transmutação, a sua capacidade de adaptação e absorção cultural, seguindo esta linha de raciocínio é necessário tomar medidas no sentido de provocar, nas pessoas que têm esta prática, um maior entendimento e uma abertura de perspectivas uma vez que também elas terão de espreitar por outra janela.

Poder-se-ia procurar uma conformidade entre as duas culturas (ocidental francesa e a africana), para isto ambas teriam de se ouvir e fazer cedências. Do lado ocidental temos a alteração nas sentenças dos tribunais e do lado dos imigrantes africanos poderia ser feita uma proposta que seria, deixar de fazer a excisão em crianças e adiá-la até que a mulher adquira uma idade suficiente para poder tomar uma decisão. Lembro-me do caso de Mariatou Kiota que ao chegar à idade adulta expôs o seu caso de excisão à polícia, isto deveu-se a uma aculturação por parte de Mariatou, tendo a oportunidade ela teria negado a prática de excisão e esta decisão iria influenciar outras mulheres. Esta medida teria, com certeza, mais sucesso em França do que em África, onde não sofrem a influência directa de outra cultura, por isso escapar a pressão cultural e ter outra perspectiva será mais complicado, mas não podemos esquecer o caso daquela mulher que recusou a prática cultural de rasgar o lábio para lá colocar o “prato”, este comportamento poderá abrir portas a outras mulheres.

-ALMQVIST, Jessica: 2005, “Cultural Ignorance of Law: An Excusing Condition?” in Human Rights, Culture and the Rule of Law, Oxford: Hart Publishing.
-DEMBOUR, Marie-Bénédicte: 2001, Following the Movement of a Pendulum: Between Universalism and Relativism”, em COWAN, Jane K. et al (eds.), Culture and Rights. Anthropological Perspectives, Cambridge University Press.
-TURNER, Terence 2007: Derechos Humanos, in A. Barañano, J. L.García, M. Cátedra, M. J. Devillard; (orgs.), Diccionario de Relaciones Interculturales. Diversidad y Globalización, Madrid, Editorial Complutense


Texto da autoria de Ariana Meireles Sousa

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